a vida secreta dos choques
EDUCAÇÃO


Isabel Coixet é uma diretora de cinema espanhola que nasceu em um período entreguerras, 1960. Um de seus filmes mais famosos é “La vida secreta de las palabras” (2005), que conta a traumática e delicada história de Hanna (Sarah Polley), sobrevivente e refugiada da guerra dos Balcãs, na Iugoslávia. Evidencio esse exemplo da sétima arte para provocar uma conversa sobre choques, modelos econômicos do capitalismo, suas consequências e efeitos, e, o mais importante, sobre quais são os olhares sociológicos para todos esses fenômenos.
A personagem do longa-metragem espanhol acima citado, no roteiro, é “obrigada” a tirar férias na indústria têxtil em que trabalha, mas a realidade a faz procurar e conseguir um emprego temporário como enfermeira, utilizando-se das habilidades que desenvolveu durante os dias mais duros da guerra, em meio a violências físicas, estupros cotidianos e abortos induzidos por soldados. O contexto socioeconômico dessa ficção faz uma alusão trágica, mas interessante, com o conceito de doutrina do choque, defendido por Milton Friedman e fortemente criticado por Naomi Klein em um documentário de mesmo nome. Segundo essa linha de pensamento, instantes de caos e medo precederiam avanços sociais e econômicos. O audiovisual faz uma relação entre esse choque político com os choques utilizados em experimentos psiquiátricos que ocasionavam dor e confusão mental, enquanto o discurso enfeitava uma cura que estava longe de acontecer.
Na vida real, e algumas décadas antes, choques como a crise econômica dos anos 1930 e as duas guerras mundiais fundavam, em simultâneo e logo em seguida, o que Leda Paulani denomina “profissão de fé”: o neoliberalismo. A economista, inclusive, faz questão de reforçar sua descrença na pouca ou nula cientificidade do modelo (que não comprova nem a autossuficiência do mercado), nascido “sem fundamentos teóricos de qualquer natureza”, nada além de uma “doutrina” (2011, p. 36). Chamando-o doutrina, Paulani recorre, também, às figuras míticas e às supostas ameaças, como a marxista, que justificavam o novo pensamento/futura prática capitalista. Foi o que houve no Chile e Argentina, por exemplo, dois “pacientes cobaias” de um ideário que, talvez, não passasse disso. Os movimentos foram parecidos: crença no choque e no neoliberalismo, seguida de tensões políticas que favoreciam ditaduras totalitárias, que, por sua vez, geravam impactos sociais fortes a ponto de deixarem claro, para quem quisesse ou pudesse ver, que o entusiástico regime favorecia a um lado, e não era o trabalhador quem estava nele.
Importante recordar que o acontecimento neoliberal sucedeu a política Keynesiana, desenvolvimentista por essência e que direcionava ao estado a responsabilidade de controlar as ações do mercado, mitigando crises e garantindo que o bem-estar social dos cidadãos fosse mantido. Foi em natural movimento de desaceleração econômica que o Keynesianismo começou a perder espaço para o neoliberalismo: com menor intervenção estatal, o caminho estaria livre para crescer, e também não estaria sobrecarregado das muitas atribuições que, naquele momento, estavam sob a tutela do Estado. O “chocar” mais uma vez, explicita ou implicitamente, tornava-se protagonista, pois após 30 anos “dourados” de um capitalismo graficamente verde, a defesa por mudança era por um modelo contrário ao do bem-estar social, favorável às privatizações, às políticas mínimas para oferecer um pedaço de pão em meio ao circo, enfim, um contraponto quase (só quase) perfeito.
Como toda doutrina balizada em mitos, a sociabilidade do neoliberalismo foi um dos fatores-chave para que, após um tempo adormecido, segundo Paulani, ele fosse rápida e intensamente difundido em todo o mundo a partir dos anos 1970/80. Como mencionado anteriormente neste texto, ele se firmou como discurso bebendo de algumas fontes antigas (do próprio liberalismo clássico, um exemplo), uma intensa propaganda acerca de sua inovação, um ocultamento violento de críticas a ele direcionadas, e com o interessado apoio dos principais, não à toa, beneficiados “nessa história toda”. A elite dominante crescia, impondo um projeto de sociedade para outros cidadãos que não coadunavam com essa ideia e tampouco lucravam socioeconomicamente, por assim dizer, dela. A retórica neoliberal sempre foi uma bala no gatilho para bancários, milionários e intelectuais de alguma forma ligados a ela.
“A vida secreta das palavras”, filme que iniciou esta leitura, agora em bom português, discursa justamente sobre a força de cada uma delas e da linguagem humana na concretização de sonhos, medos e, principalmente, verdades. Joseph (Tim Robbins) só compreende as perguntas que circulavam em sua cabeça sobre a vida de Hanna quando ela transformou gestos em linguagem; quando contou que foi sequestrada por soldados de seu próprio país para ser escravizada sexualmente ao lado de sua melhor amiga. Até esse ponto da narrativa, tudo não passava de teoria, e foi a linguagem “quem” tratou de traduzi-la em verdade. Quando uma teoria já habita na linguagem, é conduzida pelas ciências e pelo senso comum — este, muito bem posicionado por BAUMAN e MAY (2010) como um importante, mas diferente, pensamento a ser compreendido pela sociologia -, ela é naturalizada, assim como prisioneiros que aceitam sua condição devido a estarem familiarizados com ela com o passar dos dias.
O neoliberalismo é um episódio longo e em atual exibição de uma série que está no ar há séculos, sem previsão de cancelamento: o capitalismo. Seu caráter temporário não exclui os resultados do tempo em que totalizará em vigor, mas, refletindo com base em “Aprendendo a pensar com a sociologia”, de Zygmunt Bauman e Tim May, podemos esperar que logo as rotas sejam mudadas. Para os autores (p. 26), com a sociologia e seu poder de anti fixação, tornamos “flexível aquilo que pode ter sido a fixidez opressiva das relações sociais”, incluindo a dureza que nos afeta do neoliberalismo. Ao abrir um mundo de possibilidades com vieses muitos, o pensamento sociológico tende a ser uma importante força motriz para fabricar evoluções, impulsionar melhorias e tentar evitar que cometamos os mesmos erros do passado.
"No fundo, há tão pouco.
Milhões de milhões de toneladas de água, rochas e gás.
Afeição. Sangue.
Cem minutos, mil anos.
Eu já te falei, não foi? Existem poucas coisas.
O silêncio. E as palavras."
REFERÊNCIAS
A VIDA Secreta das Palavras. Isabel Coixet. Espanha. Europa Filmes, 2005 (115 min.).
A DOUTRINA do Choque: A Ascensão Do Capitalismo do Desastre. Jonás Cuáron. Estados Unidos, 2007. Youtube (78 min.).
BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. PAULANI, Leda.
A Hegemonia neoliberal. O Desenvolvimento Econômico Brasileiro e a Caixa. 1º Ed. Rio de Janeiro. 2011. p. 25–43. Disponível em: <https://bityli.com/EGweG> Acesso em: 31 jan. 2022.