aqui ficaremos bem
REPORTAGENS


De longe, era possível visualizar um homem com um olhar trêmulo que se entendia às mãos apreensivas pela aproximação. De perto, a postura endiabrada do cinquentão demonstrava certo pudor em encarar gente nova no pedaço que ele cuidava. Cuidar desse pedaço, aliás, é a atividade que o remunera mensalmente e o faz ter tostões suficientes para viver com a família no bairro Colônia Santa Isabel, em Betim.
O ambiente era literal até demais. Lugar para mortos “descansarem em paz”, o Cemitério Reino das Rosas de Santa Izabel era só silêncio naquela tarde em que encontrei Seu Adezélio com uma camisa cinza de mesmo tom do cimento que preparava. Seu filho e sua esposa estavam por perto. Com olhos recheados de orgulho, diferentemente da inconstância dos mesmos ao me ver chegar, o coveiro se apresentou contando do concurso da MGS que o fez estar onde está. Ele saiu do bairro Cachoeirinha de volta à Colônia, local que abriga, ainda hoje, seus pais e sua família de berço. Sua postura agora é firme e seu sorriso grande e narciso ilustra a satisfação de trabalhar dando “casa” a quem já não pode sorrir.
O portal do cemitério em que Adezélio trabalha é muito parecido com o da extinta Colônia Santa Isabel, internato para afetados pela hanseníase, que em início de século vinte era chamada de lepra. O portal da Colônia ainda existe, apesar da função não ser clara. Serpenteando o caminho e o observando com cuidado, é possível perceber que há espaço para enterrar novos mortos, trabalho para Adezélio, o coveiro, realizar. Ele diz que é difícil enterrar um morto hanseniano que tenha menos de 60 anos. “É 60, 70, 80, 90”, classifica. A circulação de pessoas nos enterros é grande, segundo ele. “O povo da Colônia é muito unido: quando falece alguém, anunciam até na igreja”, conta.
O cemitério foi fundado para “o pessoal da hanseníase”, como diz Adezélio. A concentração de enfermos em situação de saúde grave era colossal, e a necessidade de um local para sepultar os mortos do internato, idem. Havia muitos falecimentos pela doença, e outros tantos por motivos negligenciados como o suicídio. “Como não podiam sair pra lugar nenhum pela rejeição, falavam que era uma doença ‘pegativa’, perigosa, fundaram um cemitério dedicado.”, explica o coveiro que gosta de narrar histórias.
PROFECIA
Entrar na Colônia era um prenúncio. Para os ex-internados do local, o espaço era despreparado e servia como forma de isolamento, não tratamento. Um verdadeiro anúncio de tempos difíceis e perecíveis. A criação do cemitério assegurou lugar para “se cair morto” e, também, reforçou, naqueles tempos, que morrer era consequência de se passar pelo portal.
A construção do pórtico do cemitério representa “Izabel” com “z”, enquanto a da ex-Colônia, com “s”, ambivalência que se repete na história e nos edifícios do bairro. Essa diferença não tira o protagonismo da semelhança do formato dos dois. Uma estudante de RH que encontrei na porta do Morhan, Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase, me perguntou o que fazia por ali e, após minha resposta, contou algumas curiosidades. “O formato do arco é parecido com uma lápide, percebeu? O mesmo formato do portal do cemitério é o da entrada da Colônia.”, compara.
PALAVRAS
Para o dicionário, portal é uma abertura que permite a passagem de um lugar para outro. No caso da ex-Colônia, atual “o” Colônia, o portal representava para os hansenianos a provável entrada em outro portal, do cemitério, dentro do delimitado espaço do internato. Hic manebinus op time, estampa do portal da Colônia, em bom português significa “aqui ficaremos bem”.