calças pretas da marafona

CONTOS

gabis

1/9/20254 min read

Este conteúdo pode despertar gatilhos emocionais e não é recomendado para pessoas sensíveis.

Sem dúvida alguma, doloriram seu corpo os apertões de braço de seu pai logo pela manhã ao chegar atrasada da escola. Se encantou com as paisagens do caminho e, por instantes que pareceram horas, não se lembrou de quem a esperava com as cintas velhas retiradas dos calções largos, sempre levemente abaixados, com as bocas arrastadas ao chão.

— Não quero você na rua, “tá” me entendendo? De puta bastou sua mãe.

Dizia o ogro cinquentão após uma dose de cachaça, espécie de padre que ouvia sua confissão e o perdoava das longas sessões particulares com a filha.

Dia seguinte, mesma escola, a garota pegou o ônibus mais cedo para aproveitar a vista sem que isso ocasionasse problemas em casa, apesar de, para ela, ser muito claro que esse gozo só era possível nos momentos em que a solidão a abraçava. No tempo em que lia letreiros, admirava vitrines, inspirava o ar da janela e invejava famílias a passeio, fazia vez de novelista e destinava a essas histórias finais tristes: letreiros caíam em pessoas, vitrines se estilhaçavam em busca de sangue, o ar fresco virava fumaça e famílias morriam de mãos dadas.

Sempre que punha os pés na escola, sentia como se seu dia começasse orientado por uma bomba-relógio. Eram poucas as horas que tinha para ser quem era e compensar o bom tempo em que ficava trancada na dispensa com o pai nos últimos meses. Inclusive, ela andava preocupada, pois, somente nas duas semanas recentes, foram 3 os dias em que não frequentou as aulas por justamente fazer companhia a ratos. Isso não havia ocorrido antes.

— Querida, você está bem? Por que seus olhos estão fundos assim?

Perguntava a professorinha dia sim, dia não, equilibrando preocupação e passageiro respeito pelo espaço alheio.

A garota com rosto de boneca somente o balançava em sinal de “não é nada”, se curvava à esquerda e se empirulitava em qualquer corredor para fugir de interações sociais duradouras ou de questionamentos que não estava nada disposta a solucionar.

Ao entrar na sala, geralmente muito antes dos outros alunos, abaixava a cabeça, tamborilava os pés no chão, fazendo força para alcançar a ardósia, e se deleitava dos minutos de paz em um ambiente arejado e silencioso, mas não sufocante, pois os bem-te-vis pousados nas árvores próximas e o som ambiente de crianças correndo cumpriam um importante papel de trilha sonora de normalidade. Uma lástima o relógio andar tão rápido. Era sempre interrompida por um ensurdecedor sino, galochas estridentes se aproximando e a voz doce da professorinha simulando simpatia às 7h da manhã.

— Bom dia, turma! Abram seus cadernos na atividade que passei ontem para ser feita em casa, vou visitar a mesa de cada um!

Ao chegar na infeliz órfã de mãe, não se surpreendeu ao ver que mais uma tarefa não havia sido cumprida, nem se esforçou para puxar sua orelha. Convenhamos que a empatia involuntária veio em boa hora. Não seria agradável ouvir sermões após a entrevista com o vampiro-pai no dia anterior.

Na terceira vez que o sinal tocou, o ônibus chegou e a garota foi a primeira a se sentar nos fundos para ir embora. Não sentia mais medo de quem a formou mulher, mas aversão a como se via diante dos impropérios que ouvia; das confusões que circulavam em sua cabeça quanto à sua função de filha; das calças pretas de moletom que fediam a urina mesmo se esfolasse suas mãos no tanque na tentativa de contrariar o odor.

— Oi, minha filha!

Abriu o portão de casa, o pai, estampando sorriso amarelo na cara e calças devidamente posicionadas nas proximidades do umbigo.

— Que bom que você chegou cedo, já preparei o seu almoço, está no quartinho.

Sem pestanejar, garota-boneca se direcionou ao cubículo que não a oferecia vistas como a do ônibus ou ambientação sonora como a dos pássaros do colégio. Pegou seu prato de alumínio com cobertura de purê de batatas, sua xícara de café, se sentou no chão e lançou olhares profundos ao pai.

— Me desculpa por ontem, minha filha. Não vai mais acontecer, papai promete!

Sussurrava, com mãos trêmulas em busca da tetra chave que protegia a filha dos vilões do mundo externo com competência, mas a sugestionava a enfrentar seus piores pesadelos em cantos absolutamente internos, os de si e os da casa.

Fora do quartinho, após a limítrofe fronteira sinalizada por uma porta de metal resistente e bastante útil para abafar sons, a cachaça, para o pai, padre, entrou em cena. No fundo, ir ao confessionário do álcool já não surtia efeito há um tempo para degringolar sua culpa de transformar sua única filha em sua marafona. Na cultura popular da aldeia portuguesa de Podence, marafonas eram bonecas de trapo sem olhos, sem boca, sem nariz e ouvidos que celebravam a fertilidade.

Matou o padre com algumas goladas. Trancou as demais portas da casa que já não sustentava pedaços grandes para cair, ligou as bocas do fogão, o gás, e se deitou no sofá. Rapidamente pegou no sono, mais pela tranquilidade de sua decisão do que por algum traço alucinógeno da bebida.

Não demorou para o fogo tomar conta de três quartos, incluindo o diminutivo, uma sala conjugada com cozinha, um banheiro, um pai.

E a filha.