o formoso destino de josefina rolimã
EDUCAÇÃO


Cercada de montanhas, ouvia bolero nos fones de ouvido como se estivesse em uma viela de Madrid, mesmo estando ali, pertinho da Fernandes Tourinho. Passava por lá todos os dias como ponte para o trabalho pois vendia roupas na loja próxima, frente a uma livraria famosa na época. Chegava cedo para garantir suas comissões em tempos de recessão.
Numa dessas idas e vindas, passando agora pela Pernambuco, Delfina, filha de Serafina, lá dos lados das grutas de Cordisburgo, deixou seu livro de cabeceira cair no chão. Correria! Tratava-se de “Cinderela e o Chico Rei”, do pequeno e importante empreendimento Mazza Edições, uma literatura condizente com a vida que levava, mesmo frequentemente seduzida pelas cores claras da Espanha. Foi neste dia, no chão, no chão mesmo, ao buscar o que havia caído, que Del, como preferia ser chamada, conheceu Zé, preferência nominal de José Bernardo, o ajudante da tal livraria que servia de paisagem aos transeuntes do armazém de roupas. Entre subidas e descidas, miolos e arremates, inflações e progressos, Almodóvares e Jorges, muito amados, “arredaram” as escovas de dentes para perto uma da outra e formaram família.
Nasceu Josefina, claro “arredamento” de José e Delfina. Era uma herança de seus avós esse costume de formar coisas novas a partir do que já existe. Ela estreou na Terra enquanto Zé, leitor irremediável, passeava pelo shopping para compor o que seria a biblioteca de Sefina quando ela ostentasse idade suficiente para enveredar-se nas gramaturas deliciosas dos papeis. Das estantes, pegou de tudo: de produções das editoras Compor, Jubarte, Lê e Dubolsinho Edições, até os menos “pergaminosos” Aatchim, Abacatte Editorial, Aletria, Baobá, MRN e Rolimã, sendo esta última sua favorita por relembrá-lo de situações nas quais as descidas eram mais divertidas. Del, em casa, teve ajuda de Sara para parir a futura escritora Josefina, pelo menos se ela seguisse o sonho do pai. Coitado do Zé, chegou em casa de bolsas cheias sem saber que a da esposa havia estourado, mas abriu sorriso largo quando a vizinha que fez bico de parteira lhe disse: — Maktub, estava escrito! Parabéns, papai!
Os lábios da menina se chocaram para formar sua primeira palavra, “mimi”, suficiente para que seu pai acreditasse que ela se referia à Emília, de Monteiro Lobato, enquanto, na verdade, Josefina só estava com os olhos pesados de sono. Del também a estimulava com leituras, fazendo-as principalmente quando lhe dava o peito. Trançava seus longos cabelos com a ajuda de Sara quando apresentou Cinderela, a de Chico Rei, à sua filha. Sem entender o que a mãe dizia, Sefina sorria por ver aquela interação de mulheres que, um dia, faria alguma relação com a história de Rapunzel.
Dito e feito, “cuspido e escarrado”. O ardiloso trabalho de Zé surtiu efeito e, aos 12, a filha-da-mãe de boleros preferia livros a escorregadores; divertia-se mais ajudando a bibliotecária da escola do que jogando queimada na quadra verde, aos fundos da diretoria. Num desses dias de trabalho não remunerado, perguntou à Suzana, dona daquele espaço, porque tantos Zés, Pedros, Aristídes, ocupavam aquelas estantes, menos que Saras ou Delfinas, por exemplo. A resposta veio de um gesto, quando Suzana a encaminhou para um corredor somente de mulheres escritoras. Olhando para cima, lá no alto, encantou-se com as capas bonitas de Casa Edições, Editora Luas, Quintal e Mulheres Emergentes. Sobre essa última, lançou outra pergunta: — O que é “emergente?”. A funcionária disse a ela que emergente era o mesmo que maravilhoso, fazendo a mocinha crescer com essa semântica desajustada na cachola.
No ritmo em que as crianças espicharam, Sefina engoliu livros e não fez a medição na parede proposta pelas professoras de ciências que se sucederam até o fim do ensino fundamental. Chegou aos três últimos anos de sua vida escolar com saudade de Suzana, sua “emergente” companheira. Fez do cheiro da celulose sua força para frequentar as aulas mesmo nos dias em que seus colegas diziam seu cabelo ser “pichaim”; do gosto, sim, ela provava as páginas ao passá-las com a ponta de dedo cuspida, alimentou o desejo do pai, agora seu, de vestir-se com as roupas que quisesse, desde que compradas “na mão” de sua mãe, para sentar-se em uma cadeira acolchoada e escrever. Venceu esse período com o heroísmo da cinderela preta que Sara e Del tanto falavam, a mesma que a fez vir ao mundo, afinal, o que seria daquele casal sem a trombada cinematográfica na Savassi?
No vestibular, com a certeza do que queria, mas com a incerteza imposta aos sonhadores das Letras pelos muitos concursos e profissões super valorizadas, rendeu-se à dúvida. Com um celular novinho em mãos, pesquisou pelas palavras, claro, sobre o futuro. Hiperlinkando sonhos, clicou em repositórios da Dom Helder e por acaso viu páginas sobre a Editora Del Rey, mas Direito ela sabia que não era. Curiosa, foi além. Descobriu as editoras de algumas universidades “montanhosas’’, como da UFJF, UFMG, UFOP, UFSJ, UFMT, UFV e Puc Minas. Também questionou as ciências sociais, alugando obras da Anome e do Instituto Vladimir Herzog. Acalmou-se ao ver que seu novo lar também era serpenteado de capas duras e versões de bolso; que lá era lugar de escrever e publicar, não só de enfeitar os murais de corredores como fez nas escolas pelas quais passou até então.
Del, sua mãe, interveio com um conselho não requisitado. Disse que no curso de Moda, na idade da filha, via seus dias seguintes, e que admirava as moças estilosas que fabricavam croquis para os comércios que trabalhou durante a vida. Também disse que, mesmo acolhendo os rumos que seu destino tomou, gostaria de que aquele sonho fosse mais que um sonho, terminando com o que fez Sefina decidir pelas Letras: — Ser é leve, não se luta para ser, quando se luta, é batalha, e ser o que a gente é não pode ser uma batalha.
Estava lá, na universidade. Mãe e pai enchiam a boca de orgulho nos arredores do Padre Eustáquio. Não seria nada estranho se no Carlos Prates ou no Castelo se ouvisse falar de Josefina, filha de Del e Zé que conseguiu uma bolsa de estudos integral. A fofoca em formato de edificação percorria aquela região como se fosse transportada por um astuto cachorro de rua com pedaços de ossos na boca. Dona Elvira, que morava perto da pracinha, ouviu essa história no portão e comentou com Seu Gil de seu encanto pela vida secreta das palavras. — Eu passei em um concurso da MGS — dizia — e trabalhei em um hospital. — Lá tinha um médico muito “bacanudo” que publicava livros em uma editora só pra esse pessoal, “credita”? Acho que era COOPMED o nome”.
Essa mesma Dona Elvira foi quem ajudou Del, Zé e Sara a erguerem uma faixa, produzida pelo Seu Gil, com os dizeres “Parabéns pela formatura, minha filha. Nós te amamos e estamos orgulhosos de você”, bem num cruzamento entre sua casa e a padaria Belo Pão. Josefina chegou emocionada com seu próprio livro em mãos. Fruto do seu trabalho de conclusão de curso, foi viabilizado por um projeto de lei de incentivo defendido pela Crivo Editorial, que publicou e divulgou o trabalho da jovem letróloga nos meses que sucederam esse pendurar-de-faixas.
Antes disso tudo acontecer, no verdadeiro laboratório de testes pré-TCC, cursou uma disciplina com o professor José Márcio Barros, da UEMG, e interessou-se por cultura e produção cultural. Conheceu a Duo Editorial, Showroom, Polvilho Edições, Produções do Ó e Scriptum, fazendo questão de ler algo de cada uma delas enquanto equilibrava outro fascínio paralelo, esse, pelo patrimônio histórico destacado pela C/Arte, Conceito Editorial e Crisálida, por exemplo. Essa opção por listas não é minha, aqui sou somente narradora do destino formoso de Josefina. Ela mesma possuía cadernos, muitos, com anotações a respeito de cada empreitada dos falares que via surgir nas alterosas tropicais do Estado que tanto amava estar.
Já aos 35 anos, fez jus à Cinderela que fez papel de cupido para as transas de seus pais, uma delas responsável por ela ter alguma idade. Por “vira e mexe” lembrar-se da ocasião, transformou o que apontavam “pichaim” em impulso para seus dedos inquietos no computador. Nos intervalos das aulas particulares que mantinham as contas em dia, digitava tanto sobre seu cabelo, seu nariz, seus lábios grossos que pediam sono e Monteiro Lobato, que em menos de um ano terminou “De fino não tem nada”, compilado de crônicas sobre mulheres pretas que escrevem umas sobre as outras. O lançamento, promovido pela editora Nadyala, vencedora do Prêmio Camões 2021, foi um sucesso reconhecido inclusive por sua ídola e conterrânea Conceição Evaristo. A “pretautora” nunca esteve tão feliz por ter seguido os conselhos de sua mãe e “ser” com leveza, não com estratégia. Os pedidos de autógrafos só aumentavam e Josefina conhecia outros miolos que bem recebiam sua melanina, como a Penninha Edições, por onde lançou seu terceiro e aclamado trabalho, “Lágrimas Negras”.
Lágrimas também vieram do parto natural, este de sua primeira filha, não de livro. Betina, junção de Beto, que a abandonou, e Josefina, nasceu durante uma conferência mineira de editoras em que a mamãe participava contra recomendações médicas, mas seguindo seu coração quente e seus hormônios um pouco mexidos pela gravidez. Falava sobre a abertura do evento, sobre as participações especiais de representantes de empresas cujas publicações eram tão diversas como seus nomes. Estavam lá a Adelante, Autêntica, Cachalote, Ramalhete, Dubolso, Quixote + Do, Moinhos, Armazen de Ideias, Gutenberg, Impressões de Minas, Grupo Letramento, Chão de Feira Edições, entre muitas outras. Sefina gritou seu primeiro “ai” no microfone, tão alto que Dona Elvira, aquela da fofoca, ouviu lá no Padre Eustáquio. Paula Pimenta e Ana Elisa Ribeiro, suas amigas de profissão, a encaminharam para o hospital. No caminho, pediu por uma chamada de vídeo com seu pai para que ele lesse poesias e sua dor cessasse. Esperto que só ele, Zé Bernardo escolheu “Uma praça chamada liberdade”, do Tercetto Cultural, para recordar a filha das tardes coloridas que passavam juntos comendo Aimoré com milkshake de maracujá do Xodó. Nesses dias, levavam sempre debaixo dos braços publicações da Macondo Edições, Catapoesia e Leme: eram dias alegres e pediam um pouco de fruição.
Ah, não contei o porquê das lágrimas, né? Josefina se foi logo ao dar a luz à sua maior obra-prima, um best-seller que brotou nos corredores entusiasmados de seu útero. Antes de partir, deixou originais de um livro para ser publicado em homenagem à Del, sua mãe, gerando uma disputa positiva entre a Caos&Letras, Contafios, Editora Voo e Editora Vestígio, a última saindo como vencedora e detentora dos direitos. Foi o pai de Sefina quem cuidou sozinho de desempoeirar os traumas, enfileirar as descobertas e fazer empréstimo de sua neta aos instantes do mundo. Desta vez, ele optou por ser um observador da semente germinando, não um jardineiro ansioso que derruba gotas a mais de água pela pressa do resultado. Betina, ou Bet, como mais-queria, descobriu os clássicos sem a ajuda do velho-guerreiro das livrarias, e na Itatiaia, Orobó, Eduardo Frieiro e Edições Pindorama, notou que entre o contemporâneo e o não tão novo assim, existe uma barreira invisível que quem coloca somos nós. Seu avô mantinha sua promessa e só se referia às letras quando eram literaturas de família, como alguns trabalhos da Páginas ou Cora Editora.
Betina cresceu e virou moça aos quinze. Chegando aos 24, formou-se em Design Gráfico pela UEMG, a mesma do professor José Márcio que despertou em sua mãe a curiosidade pela cultura. Seu avô já não estava com ela na vida física, mas a acompanhava de algum lugar que ele não me passou o endereço para referenciar. Estudou teoria dos signos, história da arte e manipulação de softwares de edição com grossos livros da Tipografia do Fundo de Ouro Preto, Phonte 88, Guayabo Estudo, Entrecampo e muitos outros. Aos 30, casada com Eliseu, presenteou Sefina, Del e Zé Bernardo com Elisabet. Seguindo os passos da mãe e do avô em certa medida, trabalhava como diagramadora fazendo trabalhos esporádicos para a SQN Biblioteca e a editora Relicário, que levou ao sucesso um grande amigo da família, Miguel Javaral.
A filha de Betina tinha 7 anos quando leu a Turma da Mônica pela primeira vez, nos recreios em que descansava de livretos didáticos da RHK, Bernoulli, FAPI Editora, Formato Editorial e Dimensão. Vinda de uma família um tanto quanto subversiva e praticante do lema “support your local queens”, foi apresentada aos quadrinhos mineiros da editora Nemo rapidamente, nem precisou procurar. Seus olhos brilhavam tanto, evidenciado por suas pálpebras vantajosas, que sua mãe os mirava profundamente para ver o mundo um pouco mais limpo. Como na vida de mãe nem tudo são flores, a menina Elisabet, preferia Elisa, adorava ficar no celular jogando qualquer coisa em 2D que aparecia na tela e isso incomodava muito Bet.
Num 25 de dezembro qualquer, Betina, filha de Sefina e pai desconhecido, neta de Delfina e Zé Bernardo, decidiu dar à filha um carrinho de rolimã, o mesmo que seu avô recordava com carinho de tempos inflacionados para os adultos, mas extremamente gostosos para as crianças. A garota, de primeira, não entendeu a função daquela bugiganga, mas não demorou a se jogar nos morros do Padre Eustáquio numa velocidade acima da permitida pelas leis do trânsito adulto. Desceu pela padaria Belo Pão, parou para tocar a campainha da casa dos bisnetos da Dona Elvira, atravessou por debaixo algumas faixas produzidas pela “Família Gil Faixas Personalizadas” e cansou. Parou para recuperar o fôlego, olhou para cima, lá no alto mesmo, e leu a palavra “Biblioteca” estampada em frente a um lugar no mínimo curioso. Deixou o rolimã do lado de fora e entrou. Na primeira estante estava “Preta Del”, o livro que sua avó Sefina havia escrito para a bisa.